Faleceu hoje Rui Mourão ex-diretor do Museu da Inconfidência- Veja o texto que escreveu para o aniversário de Ouro Preto em 2017

ALEIJADINHO AINDA CONTESTADO

Autor de obra de extrema grandeza, reconhecido pela consciência crítica mais avançada como marco zero de uma tradição artística tipicamente latino-americana, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, devido a moléstia que o levou quase à beira da incapacidade física e à circunstância do aparecimento tardio das informações históricas sobre a sua pessoa e seu trabalho, tem sido motivo de contestações que chegam negar-lhe a própria existência.
De certa forma, isso acaba sendo um motivo a mais de consagração, fazendo crescer sua saga já legendária. Fenômeno semelhante ocorreu com William Shakespeare, Luiz de Camões enquanto poeta lírico e outros. Num campo de completa liberdade como a ficção, explorando a contundência da abordagem – sempre de efeito junto ao público – , até Tiradentes foi objeto de romance de Assis Brasil, no qual aparece dito com todas as letras, o herói da luta pela independência não subiu à forca. Substituído no sacrifício por outra pessoa, acabou em Portugal, protegido da Corte, só não ficando esclarecido se chegou a ter um caso amoroso por lá.

Correção Histórica

As referências, nos séculos XVIII e XIX, à pessoa do escultor e suas condições físicas de trabalho são muitas. O pesquisador Francisco Magalhães Gomes, em artigo ainda inédito, arrolou indicações feitas por Germain Bazan, autor dos livros A Arquitetura religiosa no Brasil e O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil: “Ele tinha as mãos paralisadas e era preciso que lhe prendessem o cinzel”, Wilhem Eschwege,
1811; “Ele não tinha mais mãos e era preciso prender o martelo e o cinzel no seu punho”, John Luccok, 1811; “Ele perdeu o uso das extremidades e fazia-se amarrar os ferros à extremidade do antebraço”, Antoine de Saint Hilaire, 1818; “As estátuas de Congonhas foram esculpidas por um homem sem mãos”, Friedrich von Wech, 1850; “A porta da igreja principal de Sabará foi executada por um homem sem mãos”, Francis de Castelnau”, 1850; “Perda dos dedos da mão, salvo o polegar e o indicador. Martelo e cinzel amarrados às mãos deficientes”, Rodrigo Bretas, 1858; “As esculturas de São Francisco, de São João del Rei, são frutos da habilidade manual de um homem que não tinha mãos”, Richard Francis Burton, 1868.
As afirmações dos viajantes estrangeiros podem ser confirmadas pelo exame das obras dos mesmos, acessíveis nas boas bibliotecas brasileiras. A atribuída a Rodrigo José Ferreira Bretas tem sido objeto de contestação, por apoiar na Memória dos fatos notáveis de autoria do 2º. vereador da Câmara de Mariana, Joaquim José da Silva, no Livro de Registro da instituição, que desapareceu e até hoje não pôde ser localizado. Esgotadas as buscas levadas a efeito nos mais variados arquivos do país, e descrentes quanto à possibilidade de o documento haver sido destruído por causas naturais, certos pesquisadores, sem respeitar a honestidade intelectual do autor de Traços Biográficos do Finado Antonio Franscisco Lisboa, chegaram a criar a versão de que o repositório de crônicas nunca existira, teria sido invenção para sustentar a veracidade de uma obra sensacionalista. Acontece que o historiador Cássio Lanari, em ensaio publicado em 1979, no VI Anuário do Museu da Inconfidência, comprovou a existência do Livro de Registro de Fatos Notáveis da Câmara de Mariana e da Memória escrita pelo Vereador Segundo
em 1790. O texto, exemplarmente documentado, não dá margem a contestação. Numa citação da crônica do vereador Joaquim José da Silva feita por Bretas, o construtor e decorador Antônio Francisco Pombal é referido como sendo irmão de Manuel Francisco Lisboa, revelação que até hoje não apareceu em nenhum outro documento. Como a certidão de casamento de Manuel Francisco Lisboa, na matriz
ouropretana de Antônio Dias, o dá como “filho legítimo de João Francisco e Madalena Antunes, natural de Odivelas, termo do arcebispado de Lisboa”, Cássio Lanari foi levantar em Portugal as certidões de nascimento, comprovando que Manuel Francisco e Antônio Francisco efetivamente eram irmãos, nascidos “no lugarejo chamado Pombais, pertencente à freguesia do Santíssimo Nome de Jesus, de Odivelas, uma das paróquias do arcebispado de Lisboa”. Dessa maneira ficou provado, o trecho incluído na biografia de
Aleijadinho efetivamente foi transcrito da Memória do segundo vereador de Mariana.

Negação do Nome

O historiador A. J. R. Russel-Wood, autor de biografia sobre Manoel Francisco Lisboa, publicada pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, em 1968, talvez influenciado pelos que insistiam em negar a existência da Memória do vereador Joaquim José da Silva, chegou a referir-se a Antônio Francisco Lisboa como “suposto” filho de Manuel Francisco Lisboa. E continuando a demonstrar
elevado grau de suspeição a respeito da veracidade das informações de Bretas, o pesquisador inglês chegou a duvidar do próprio apelido “O Aleijadinho”, que teria sido inventado pelo autor dos Traços Biográficos – quando não é verdade, muito antes no texto Em torno da História de Sabará, de Zoroastro Vianna Passos, publicação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº5, 1940, p.160 – , esse designativo aparecera, e a contestação do sobrenome “Lisboa”, que considera mero designativo de origem de local de nascimento, não deixa de ser surpreendente, por estar em jogo uma pessoa a respeito quem jamais se poderia pensar em procedência europeia.
Mas Russel-Wood foi ainda mais longe. Sem comprovar, chegou a dizer que os códices do século XVIII continham tantas alusões a Antônio Francisco Lisboa em Ouro Preto, que só poderiam “referir-se a mais de uma pessoa”. Examinando todos os códices existentes, o pesquisador brasileiro concluiu também pela improcedência da alegação.
Embora o ensaio de Cássio Lanari tenha posto por terra todas essas inconsistências, infelizmente elas continuaram sendo usadas para negar a existência e a personalidade excepcional do criador mineiro, patrono das artes no Brasil, cuja característica maior é a originalidade.

Antecipador do Futuro

Como estudos foram, com o tempo, apontando temas, motivos, às vezes simples detalhes ornamentais de criações do passado, na obra de Antônio Francisco Lisboa, levantou-se a suspeita de que o maior criador do chamado barroco mineiro não possuía originalidade. Essa opinião foi equivocadamente reforçada quando a pesquisa concluiu que ele utilizara, na condição de modelos, estampas alemãs e de outras procedências. E se chegou ainda mais longe nesse sentido, na emergência de outros estudos que vieram revelar, a estética praticada por Aleijadinho era anterior à do seu tempo, ele procedia da mesma forma que os criadores do Renascimento, recriando as obras dos grandes mestres.
Acontece que a famosa emulação, fato por demais conhecido, não reduzia nenhum criador ao servilismo da simples cópia de modelos. Emular era disputar, se possível superar. Não significava, em absoluto, renúncia à capacidade criadora. A partida para imitar significava disposição para competir, recriar.
Quem estiver interessado em ver definida de maneira objetiva a originalidade de Aleijadinho, que faça a aproximação da obra dele com a de Francisco Xavier de Brito, artista português falecido quando o ouropretano não passava de adolescente mas que sem dúvida o influenciou. Seria interessante utilizar, por exemplo, o coroamento de altar Santíssima Trindade, realizado para igreja de Santa Bárbara, que atualmente integra o acervo do Museu da Inconfidência. Os traços que, possivelmente saídos dali, passariam a ser recriados pelo escultor brasileiro, encontram-se visíveis em figuras de santos, anjos, e
mesmo nos planejamentos. O que não se vê na obra do antecessor são a intensa dramaticidade e a plasticidade, características que estabelecem distância de anos luz entre o mestre e o discípulo. Outra comparação que talvez produza resultado ainda mais expressivo é a que tantas vezes tem sido feita entre o conjunto escultural de São Bom Jesus, de Congonhas do Campo, e o do Santuário de Braga, considerado pelos especialistas, como inspirador daquele. Mesmo a pessoa mais desarmada do ponto de
vista crítico não encontrará dificuldade em apontar de que lado ocorreu o fenômeno do vôo livre da genialidade.
A obra como produto acabado, vivo, independente de todas as motivações que contribuíram para a sua criação, por estarem fundidas numa co-realidade, é a compreensão mais avançada a que chegou a estética dos nossos dias e ela é que deve ser aplicada para a avaliação daquilo que produziu Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, artista que foi além da sua época e precisa ser encarado, necessariamente, como um antecipador da modernidade. A crítica comparativa é válida para a análise de obra consagrada, se tiver condições de contribuir para ampliar a significação do produto acabado, não quando o seu intento seja o de desmerecê-lo. A história da evolução dos gêneros é legítima e deve ser invocada para a compreensão de realizações que se encontrem superadas ou incompreendidas no presente – perderam contato com uma temporalidade que não é mais a sua – , mas podem ainda de alguma forma serem recuperadas no seu entendimento, através de uma abordagem relativizada. Para que haja compreensão realmente ampla do que a estética atual vem exigindo em matéria de abordagem do produto artístico, que fique bem esclarecido, a crítica genética tem mais aplicação é no estudo de períodos artísticos. Um fenômeno como o do Aleijadinho, que na sua plenitude participa do momento em que estamos vivendo, tem que ser tratado é em termos de contemporaneidade.

Rui Mourão

Quem foi Rui Mourão


Rui Mourão nasceu em Bambuí-MG. Romancista e ensaísta, lecionou Literatura Brasileira na Universidade de Brasília e nas Universidades de Tulane, Houston e Stanford, nos Estados Unidos. Participou dos movimentos das revistas literárias Vocação e Tendência, tendo sido diretor desta última. É membro da Academia Mineira de Letras. Foi editor do Suplemento Literário do Minas Gerais, chefe do Departamento Cultural da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, diretor-executivo da Fundação de Arte de Ouro Preto, coordenador do Grupo de Museus e Casas Históricas da Fundação Pró-Memória em Minas Gerais e coordenador do Programa Nacional de Museus, as duas últimas funções acumuladas com a de diretor do Museu da Inconfidência, cargo que ocupou de 1974 a 2017.

Romances publicados – As raízesCurral dos crucificadosCidade CalabouçoJardim PagãoMonólogo do EscorpiãoServidão em famíliaBoca de chafariz (Editora UFMG, 2010), Invasões no CarrosselQuando os demônios descem o morro, Mergulho na Região do Espanto.

Livros de ensaio – Estruturas: ensaio sobre o romance de GracilianoMuseu da Inconfidência (com contribuição de Francisco Iglésias), Museu da InconfidênciaO alemão que descobriu a AméricaA nova realidade do museu.

Prêmios recebidos – Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 1956 e 1971; Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro; Reconhecimento Especial do Pégaso, na Colômbia (concorrendo com 427 livros publicados no continente), em 1994; Ficção 2002, da Academia Brasileira de Letras; Centenário de Maria Helena Cardoso, da Academia Mineira de Letras, em 2002; Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, pelo conjunto de obras, em 2013.

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Amigo da Imprensa

Rui Mourão foi um grande incentivador do Diário de Ouro Preto, sempre apoiou nossas reportagens. Lia o jornal, as vezes pegava na rua durante a distribuição como todo mundo, mesmo sabendo que teria uma a sua espera no gabinete. Ele dava sugestões de pautas. Todas as vezes que era demando por nossa reportagem, respondia tempestivamente, como no texto publicado acima.
Em 2004, além de nos deixar fotografar todo o expositivo do Museu da Inconfidência, permitiu que acessassemos os telhados para fotografar os escombros do Hotel do Pilão. Naquela época não havia a comodidade de um drone.


Por Marcelino de Castro